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Minas, monas e mascarados

A lição de resistência dos estudantes secundaristas do Paraná




A aula da professora – cujo nome não se pode publicar – ia morna na noite da última sexta-feira de setembro na escola Jorge Andriguetto, na periferia de Curitiba.


De repente, um aluno mudou de assunto e quis saber o que a profe achava da proposta do governo de reforma do ensino médio e da PEC 241.


Ela então esquentou a temperatura da classe pra quase incendiando, dando uma aula de cidadania e política – já saiu chutando o balde chamando Temer de golpista.


Ela explicou pros adolescentes do terceiro ano do ensino médio tim tim por tim tim a PEC do Fim do Mundo. E criticou a reforma, que se sair pode acabar com aulas como a dela.


A profe fechou sua fala condenando racismo, homofobia e machismo, pedindo “respeito para minas e monas” – minas são meninas, monas neste contexto vale pra LGBTs.


“Quando ela terminou, a gente viu que nosso presente é uma bosta e que nosso futuro está ameaçado de ser pior ainda”, lembra Henrique, 17, presente na agora histórica classe da profe X (ela pediu para não ser identificada porque teme perder o cargo).


Henrique disse que depois das explicações da profe houve um silêncio profundo na sala: “Olhei pro lado e vi uma colega se remexendo na cadeira, mas ninguém queria sair da sala. Faltava alguma coisa, até que um menino perguntou o que a gente poderia fazer”.


A mestra teria dito “ocupem esta escola e a defendam, ela é de vocês!”.

Se disse ou não disse, assim foi feito.


O mosaico de protestos foi do fim da reforma à revogação da 241, reforço na alimentação, o respeito pras minas e monas, além de indicar voto nulo no segundo turno das eleições municipais.

Bastou cinco minutos de papo com os líderes do Ocupa Paraná pra saber que a maioria pertencia a grupos de esquerda.


Muito PSTU, muito PCdoB, muito PSOL – ninguém assumia, nada de bottons, nem papo em off com jornalistas da grande imprensa. “Somos apartidários” era o mantra dos com-partido.


Ocupar e resistir não é uma tarefa fácil. É preciso cadeados e correntes. E uma baita logística para manter mais de 800 portas trancadas em dezenas de cidades ao mesmo tempo.


Mais: como alimentar a multidão de militantes por conta própria, já que o governo suspendeu as refeições ? Entram aí mamães e seus farnéis e viandas.

Também é necessário um bocado de militantes, mínimo de 40 por escola, se revezando em turnos de 20 – uma lei não escrita da PM diz que com menos de 20 é arruaça e não ocupação, ensejando retirada pela força.


Na prática, exceto pelos colégios maiores, poucas ocupações tinham mais do que 50 estudantes ao mesmo tempo.

Nos momentos lights da ocupação, os temas mais triviais e mundanos eram tratados.


Uma menina abriu o papo da noite do domingo contando numa rodinha que “eu achava que meu diretor fosse gay, mas é um tiozão machista e homofóbico, casado e com filhos”.


Uma funcionária da escola, contrária às ocupações, aproveitou a deixa pra contar que “eu vi umas 20 camisinhas penduradas num varal, este pessoal está aí só pra transar fora de casa”.


Outra funcionária, na portaria do CEP, queria que “o tio Beto” cortasse água, luz e comida “pra ver se eles continuam lá dentro” – ela parecia louquinha pra voltar ao trabalho.


Os professores já enfrentaram a ira do tio Beto, o governador Beto Richa, durante a greve de 2015, num episódio célebre de confronto com a PM na frente do palácio. Agora eles pegaram carona na ocupação e paralisaram as atividades por 15 dias, em apoio aos meninos.

Mas, como sempre, nem todos são ponta firme. O professor Gabriel, 32, de química, formado na Unicamp e concursado no Paraná, lotado na escola Leôncio Correia, estava traumatizado com a ocupação: “Eu vi os mascarados entrando e dominando o colégio, foi assustador. A gente não sabe se vai sofrer alguma violência, então é melhor deixar tudo com eles”.


Falar de violência num movimento tão grande, tenso e envolvendo milhares de pessoas seria natural, mas outubro teve zero BOs.


Por tudo que se noticiou de boatos, de sustos, suposta violência por parte de pais insatisfeitos, ameaças do MBL e atuação da PM, não houve incidente graves – exceto pela morte explicada de Lucas, aluno do Sanfel, que tomou uma facada de um colega pirado.


As ocupações sempre têm jeito meio zoneado, com estudantes vagando como zumbis pela manhã, enrolados em cobertores – nas boas escolas públicas de Curitiba pais com carros importados esperavam a meninada pro café da manhã.


Elas só estavam coordenadas no rigor em enxotar a imprensa, recebida depois de assembleias. Uma revoada de militantes com celulares gravava perguntas e respostas porque o pessoal andava ressabiado com a mídia – na segunda-feira 31 de outubro a repórter da Globo Ana Zimmerman tomou um bostaço de pomba no ombro, jogado do segundo andar de um prédio onde não havia pombos.

Ainda é muito cedo para avaliar o impacto dos 30 dias de “autonomia” (na visão deles), “baderna” e “brincadeira” (na visão oficial) do Ocupa Paraná, mas já é possível dizer que ações com adesão espontânea tão rápida são raras na história política do Brasil – crédito à internet.


O Rio Grande produziu a Legalidade contra a ditadura nascente. Santa Catarina teve a Novembrada para enfrentar o general Figueiredo. O Paraná tem agora sua crônica de ocupações na ficha de resistência política.

A UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas) tentou surfar na crista do que chamou de “primavera secundarista” – mas o apelido não colou.


Com o exemplo paranaense se espalhando para outros estados e chegando a quase mil escolas, a imprensa veio registrando de forma burocrática e discreta os agitos.


O governo conseguiu aprovar a PEC 241 na Câmara (ainda falta o Senado), entre os dias 11 e 26 de outubro, mesmo enquanto crescia o número de escolas ocupadas, provocando a turma entocada nelas com a vara curta.

Aí, no dia 24, a morte de Lucas na escola curitibana Sanfel serviu como base para os governos municipal, estadual e federal tentarem criminalizar o movimento – afinal, na escola sob controle dos estudantes o pessoal estaria se matando uns aos outros.


O governador Beto Richa mandou condolências à família e um recado aos amotinados: “É ainda mais gravíssimo e lamentável, porque (a morte) aconteceu no interior de uma escola ocupada, que deveria estar cumprindo a sua missão de irradiar a luz do conhecimento e a formação da cidadania. Peço ainda, mais uma vez, que os estudantes encerrem esse movimento. A ocupação de escolas no Paraná ultrapassou os limites do bom senso…”.

O crime foi uma banalidade. Lucas e Vagner eram de turmas diferentes, o primeiro estudioso, o segundo estava muito atrasado, no nono ano.


Enquanto o pessoal mais politizado do movimento estava no pátio, os dois começaram a incomodar. Tinham consumido muito ecstasy, alucinaram. “Mandamos eles embora pra se limparem da piração”, conta Joana, 14.

Os dois pirados foram para a sala dos professores: “Eu só vi quando eles entraram”, conta Carlos. “Nenhum de nós poderia imaginar este desfecho”.


Não havia testemunhas dentro da sala quando o crime ocorreu. Sabe-se apenas que Vagner usou uma faca de cozinha pra dar duas estocadas no parceiro de balada.


No imaginário popular a morte foi posta na conta dos ocupantes – a tese oficial é que crimes assim só acontecem durante ocupações, mesmo que esta tenha sido a primeira da história do Paraná, sem nenhum parâmetro anterior.

Morto Lucas, mártir sem causa, nasceu Ana Júlia, a face visível da…”horizontalidade”.

É que o movimento de ocupação, gostam de dizer os ocupantes, nasceu horizontal, isto é, sem nenhum protagonista.

Com ela as ocupações ganharam sua face e sua maioridade.

Quando o PT levou Ana à tribuna da Assembleia do Paraná para defender o já crescidinho movimento ninguém imaginava o show que a menina daria de improviso.


Durante cada semestre letivo do futuro – ou pelo menos enquanto o vídeo dela estiver vivo na internet – as próximas gerações de secundaristas vão ter sempre um exemplo no discurso de Aninha, em defesa da educação pública e contra o autoritarismo: a menina de 16 anos botou pais, professores e autoridades de joelhos no milho.

E a brilhante resposta dela quando um deputado a questionou ? Ela lembrou que o Estatuto da Criança e do Adolescente manda proteger nossa juventude e bla bla bla. Gol.


Porém, sendo porta-voz do movimento, Ana Júlia cruzou a fronteira da política e invadiu a fortaleza dos partidos tradicionais.

Logo ela tomou chumbo: durante sua curta trajetória ao estrelato foi criticada não por sua posição, mas sim porque seu pai fora militante do PT – ninguém parece se importar se o pai de um certo juiz apoiou a ditadura e ajudou a fundar um partido de direita no Paraná.


Ana se defendeu dizendo que o pai não está ligado ao partido. E que ela é ela. Admitiu: “Como todo mundo, tenho posicionamento político, todos os líderes têm, mas abandonamos tudo para lutar por nossos direitos, por uma escola pública de qualidade”.


O movimento então cresceu e invadiu a grande imprensa, que veio noticiando pinga pinga cada nova ocupação em cada estado – os mapas na TV pareciam aqueles de previsão do tempo, com mais de meio Brasil em chamas.

A imprensa só botou a lupa no Paraná depois da morte de Lucas, coincidindo com a proximidade da votação do segundo turno das eleições municipais, quando muitas escolas impediram a realização da votação em suas dependências. A cereja no bolo foi a realização do ENEM, por fim adiada em 364 escolas do país.


Resultado: alguém soltou as feras do MBL pra dar uma mãozinha ao governo. Como ele tem em seu currículo a força de ter ajudado na derrubada de Dilma, parecia moleza enfrentar os estudantes.


Foi maus: a entrada deles em cena – veja link de vídeo – acabou sendo mais encenada do que realmente “participada”.


A estratégia do MBL foi mandar alguns carinhas para as portas de algumas escolas bater boca com os piquetes e mostrar o que já se sabia, que elas estavam ocupadas – factóide desenhado pra pintar na telinha.


No mais, foram escaramuças – tipo passar um carro e alguém lá dentro bradar “vagabundos”. No fim, o MBL tentou trazer os estudantes pra brigar na rua, sem sucesso: “Não aceitamos as provocações”, conta Isabela, 20 anos, estudante de Filosofia da PUC – uma delicada apoiadora do movimento que bateu boca com mbelistas bombados na porta do CEP.

Aí, quando o movimento estava no auge, começou a murchar. O ministro da Educação Mendonça Filho anunciou que vai manter a reforma e fim de papo.


O governador Richa foi à Justiça pedir reintegração das escolas ocupadas. Uma juíza concedeu liminar e um acordo foi feito para Ministério Público e OAB coordenarem uma retirada sem porradas – Richa teme dar um novo tiro no pé desde que usou violência contra professores em abril do ano passado.

O efeito da ordem judicial de desocupar escolas revelou que a grande maioria dos estudantes e professores do Paraná respeita a lei e a ordem – e os líderes dos protestos, isolados contra a maioria que queria fazer o exame do ENEM, começaram a fraquejar.


No sábado 29 de outubro, pela manhã, depois da ordem da juíza, o pessoal da escola Cunha Pereira, em Fazenda Rio Grande, parecia aliviado, recolhendo colchonetes, roupas e caixas de papelão com restos de comida – numa operação tipo despejo de sem-teto. Não tinha PM, mas os retirantes estavam exaustos pelo mês de vigília. Foram numa boa.

No domingo 30, o núcleo duro das ocupações se reuniu no CEP para uma última sacada. Na iminência de perder o controle da escola, eles decidiram que a melhor defesa seria o ataque, com a ocupação de um departamento da Secretaria de Educação.


Na manhã de segunda 31, quando centenas de escolas já tinham voltado às aulas, cerca de 70 secundaristas e alguns universitários marcharam em grupos isolados até o Núcleo Regional de Educação (NER) e tomaram o prédio, afugentando os burocratas aos gritos de “ocupar e resistir” – máscaras, bandeiras negras, jeito de maus, mas zero violência. Veja o vídeo.


A coisa ganhou clima surreal quando uma tenente de 25 anos liderando um pelotão de apenas cinco PMs entrou no saguão do NER pra saber qual era o babado.


Cordialidades foram trocadas. Os estudantes garantiram que jamais sairiam. A PM que nunca invadiria.

Naquele momento a primavera secundarista estava com seus dias contados.


No dia seguinte, a vanguarda da resistência estava esgotada e também deixou o NER, sem incidentes.

Um golzinho: em Brasília, o presidente da Câmara Rodrigo Maia começou a falar em quem sabe jogar a reforma do ensino pra debater na Casa… Mas o governo endureceu e ele se calou.


Segunda-feira as aulas recomeçam no Paraná desocupado, mas em outros estados, como Minas e Espírito Santo, o movimento cresce.


Fica um recado para o pessoal que pensa que derrotou os secundaristas: a maioria dos manifestantes nasceu de 2000 pra cá.


Tão ligados? Eles têm o tempo a seu favor.


A luta deles ainda nem começou.




Crédito das imagens: Douglas Arving / Agência Pública



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