Como “efeito Bolsonaro” coloca Amazônia em risco
Reportagem investiga avanço do desmatamento em áreas de preservação. Propostas de mudança da legislação, desmonte de órgãos de fiscalização e asfaltamento levaram agronegócio, grileiros e crime a acelerar ataque à floresta
Por Clara Roman - ISA no Outras Palavras
Em ano de recorde de desmatamento na Amazônia, as áreas protegidas – Unidades de Conservação (UCs) e Terras Indígenas (TIs) – também sofreram com a derrubada de floresta. Análise do ISA, feita a partir dos dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), indica um aumento de 69% do desmatamento em UCs federais e de 24% em UCs estaduais. Os dados consideraram o desmatamento entre agosto de 2018 e julho de 2019.
Ainda assim, as áreas protegidas continuam funcionando como importantes barreiras contra o avanço da destruição, O desmatamento está concentrado em poucas UCs: 15 UCs federais e cinco UCs estaduais concentram 90% do desmatamento.
O desmatamento nessas áreas representa 13,6% do total de toda a Amazônia.
Redução da fiscalização, discursos pró-desmatamento do presidente Jair Bolsonaro, e intenção de diminuição de áreas protegidas estimularam a alta e se somaram a problemas históricos que já ocorriam em algumas regiões críticas.
Propostas de alteração de limites das reservas criam uma corrida para roubar de terras públicas: a grilagem. “Quinze das 20 UCs com maiores áreas desmatadas já tiveram processo ou proposta para alteração de seus limites. Existe uma clara relação entre grilagem, atividades ilegais e desmatamento no interior de UCs”, explicou Antonio Oviedo, pesquisador do ISA. Segundo fontes locais, a especulação fundiária cresce com o desmonte dos órgãos ambientais do país. A perspectiva de impunidade movimenta a expectativa das pessoas e estimula o roubo de terras.
É o caso da Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim, localizada no entorno da BR-163, no Pará. A Flona foi campeã, entre as UCs federais, do desmatamento no período, com 10.097 hectares derrubados. Em 2017, uma Medida Provisória (MP) chegou a prever uma redução de 57% da área original da Flona. A MP não foi aprovada, mas foi transformada em um projeto de lei, ainda em tramitação, o que gera a expectativa de redução.
Segundo Maurício Torres, pesquisador da Universidade Federal do Pará (UFPA), a perspectiva de mudança na área da Flona alimenta um mercado de especulação imobiliária e de roubo de terras públicas. O desmatamento, segundo ele, é um instrumento de controle territorial. Ou seja, com a ausência do Estado e de fiscalização, quem desmata torna-se proprietário irregular daquele pedaço de terra, na expectativa de ganhar o território caso haja a desafetação.
Pesquisadores vêm comprovando a relação entre medidas ou propostas de redução, recategorização ou extinção de áreas protegidas e as invasões a essas áreas. Se políticos e autoridades sinalizam nesse sentido, as invasões tendem a aumentar sob a expectativa da legalização da ocupação e roubo de terras nesses territórios. O desmatamento acaba sendo uma das maneiras de tentar comprovar a posse efetiva dentro das invasões.
O perfil da ocupação é bem variado: comerciantes, grileiros, membros de organizações criminosas. Mas todos têm se beneficiado com o aumento do fluxo da soja, consequência do asfaltamento da rodovia, que é uma das principais rotas de escoamento do grão produzido no Mato Grosso. A BR-163 conecta essas fazendas com o porto de Miritituba, no Pará. “Quando você pavimenta, aumenta o trânsito por ela, e isso aquece violentamente o mercado de terras na região que ela atravessa”, disse Torres.
Outras UCs nas proximidades da rodovia também constam entre as 10 mais desmatadas. É o caso da Flona de Itaituba II, a Flona de Trairão, o Parque Nacional de Jamanxim (Parna) (veja tabela).
Bacia do Xingu
Na porção paraense da Bacia do Rio Xingu, está a UC com a mais alta taxa de desmatamento no período: a Área de Proteção Ambiental (APA) Triunfo do Xingu, com 44.010 hectares ha de floresta destruídos. Em seu interior, foi registrado o maior polígono de desmatamento em 2019, com cerca de 4.900 ha hectares.
O Sirad X, sistema de detecção por radar de desmatamento da Rede Xingu +, vem denunciando o problema para os órgãos de controle desde o início do ano. O principal vetor de desmatamento na APA Triunfo do Xingu é a expectativa de regularização de áreas griladas promovida pelos governos estaduais e federal.
Ações de fiscalização são essenciais para combater as atividades ilegais: após uma ação de fiscalização realizada em setembro, o desmatamento na APA caiu 72% no mês seguinte. Elis Araújo, advogada do ISA, aponta que sem um plano de manejo para ordenar a ocupação na APA, “operações pontuais sem uma presença permanente dos órgãos de fiscalização não garantem a proteção e gestão do território”.
A UC é vizinha de outras áreas protegidas que compõem o Corredor Xingu de Diversidade Socioambiental – Estação Ecológica (Esec) Terra do Meio, Parque Nacional (Parna) Serra do Pardo e Terra Indígena Kayapó. “A magnitude do desmatamento na APA fez com que as atividades ilegais que historicamente aconteceram dentro dessa UC virassem um problema regional que ameaça todas as áreas protegidas de seu entorno”, pondera Araújo.
No Xingu, a Esec Terra do Meio, a Flona de Altamira e a Reserva Extrativista (Resex) Riozinho do Anfrísio também entraram no ranking das 10 UCs federais mais desmatadas.
Rondônia e Sul do Amazonas
Em Rondônia, outro polo de devastação. Três das cinco UCs estaduais mais desmatadas estão no Estado. São elas a Resex Rio Preto-Jacundá, com 27.752 hectares desmatados, a Resex Jaci-Paraná e a APA Rio Pardo, com 9.483 ha e 2.466 ha desmatados, respectivamente.
A Flona do Bom Futuro e o Parna Pacaás Novos, ambos federais, também estão entre as 10 UCs federais mais desmatadas. O Parna Pacaás Novos é sobreposto à Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau.
Segundo Ivaneide Bandeira, da organização Kanindé, que atua no estado, esses números refletem o aumento da grilagem na região. Também em Rondônia, um projeto de lei tenta acabar com 11 UCs criadas recentemente, o que torna a situação fundiária ainda mais instável.
A região da Flona Bom Futuro e da APA Rio Pardo já é palco de disputa há muito tempo. A Flona do Bom Futuro, localizada no município de Porto Velho e Buritis (RO), foi criada em 1988. O relatório “O Fim da Floresta?”, do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) (2008), relata que a invasão da área iniciou-se com a retirada de madeira por empresas dos municípios de Buritis e Alto Paraíso, seguida pelo estabelecimento de loteamentos. Esse histórico de ilegalidade e ocupação desordenada transformou a Bom Futuro numa das UCs com maior desmatamento acumulado, o estabelecimento de um assentamento de aproximadamente 5.000 habitantes em seu interior, o distrito de Rio Pardo, e centenas de criadores de gado ilegais, com um rebanho estimado em mais de 35 mil cabeças. Em 2010, no contexto da instalação das hidrelétricas do Rio Madeira, permutas de terras da Floresta Nacional Bom Futuro, Esec Cuniã, Parna Mapinguari e UCs estaduais de uso sustentável, realizadas entre a esfera federal e estadual, proporcionaram alteração de categoria e esfera de gestão de parte das áreas envolvidas, além de legitimar a ocupação na Flona, com a desafetação da porção ocupada convertida nas APA e FES estaduais do Rio Pardo, com área aproximada de 144.417 ha.
“Todas [as UCs] sofrem pressão de grileiros. A Resex Jaci-Paraná tem mais de 100 mil cabeças de gado”, explicou Bandeira. Desde a época da eleição, ela denuncia o aumento de invasões na região e a ousadia de grileiros e madeireiros, empoderados pelo discurso do governo. “A situação é crítica. Houve um aumento nas invasões tanto por madeireiros, como por grileiros e garimpeiros”, alertou.
Os indígenas Uru-eu-wau-wau, que vivem na Terra Indígena sobreposta à Parna Pacáas Novos, têm sofrido com as invasões e estão amedrontados. A TI também consta no ranking das 10 mais desmatadas, de acordo com o Prodes. “As queimadas destruíram áreas nativas e de castanhais e colocaram em perigo a vida de milhares de animais, muitos destes ameaçados de extinção. A insegurança na região coloca a vida de todos em perigo”, lamentou ela.
Segundo Antonio Oviedo, as queimadas que chocaram o Brasil e o mundo no segundo semestre deste ano foram consequência direta do aumento do desmatamento. A floresta tropical preservada dificilmente pega fogo. Já a floresta degradada ou derrubada, é altamente inflamável.
Uma força-tarefa do Ministério Público Federal (MPF) realizou quatro grandes operações para combater as invasões em TIs e UCs do estado. Ao todo, 30 pessoas e oito empresas foram denunciadas por crimes como invasão de TIs, lavagem de dinheiro, organização criminosa, dano ambiental, entre outros. “No Pacaás, os grileiros são orientados pela Asprorib, que é uma associação de produtores rurais. Vários foram presos na última operação que teve na área”, contou Bandeira.
Mato Grosso e sul do Amazonas
No Mato Grosso, a Resex Guariba-Roosevelt teve 2.635 hectares derrubados. Segundo fontes locais, os madeireiros estão roubando toda a madeira às margens do Rio Guariba, próximo à Colniza. A madeira roubada é esquentada por meio de documentos de origem florestal (DOFs) e depois vendida como madeira legalizada.
A destruição em Rondônia e Mato Grosso é tanta que grupos de fazendeiros desses estados estão seguindo a rota da derrubada, na direção norte. Segundo fontes locais, o gado “serve para amansar o solo”. Depois de alguns anos, as áreas desmatadas são usadas para o plantio de soja. Por isso, os fazendeiros avançam para outras áreas para a criação de gado. O novo alvo é o sul do Amazonas, que sofre há alguns anos com o aumento do desmatamento e da especulação imobiliária. Com o discurso do governo, a falta de fiscalização e a perspectiva de mudança legal, o mercado de terras se aquece, e grileiros invadem terras públicas.
A Flona de Aripuanã é um exemplo. Foram 738 hectares derrubados, um aumento de 251% em relação ao ano anterior. Dois anos sem fiscalização consolida a grilagem, explicam fontes locais. O Parque Nacional Campos Amazônicos, outro exemplo, que também fica na região, teve um aumento de 430% no desmate em relação ao ano anterior, totalizando 201 hectares desmatados.
As informações desta série de reportagens foram produzidas a partir dos dados espaciais do Prodes 2019 referentes a estimativa do desmatamento no período ago/18 a jul/19; dados em valor absoluto de desmatamento em hectares; cálculos realizados para a área mapeada pelo INPE para a estimativa 2019; utilização da base cartográfica de terras indígenas do ISA (que considera terras indígenas, reservas indígenas e dominiais indígenas); o estudo considerou 207 territórios indígenas, 103 UCs federais e 112 UCs estaduais; e desconta a sobreposição entre as áreas protegidas na seguinte hierarquia (TI>UCf proteção integral>UCe proteção integral>UCf uso sustentável>UCe uso sustentável).