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Desigualdade ambiental em São Paulo: por que o direito ao verde não é para todos



  • O novo Mapa da Desigualdade de São Paulo faz um levantamento da cobertura vegetal na maior metrópole do Brasil e revela os contrastes entre bairros nobres e áreas periféricas

  • A falta de áreas verdes tem o potencial de gerar ilhas de calor, aumentar a poluição e intensificar o risco de enchentes; em muitos bairros paulistanos, o direito ao verde está diretamente relacionado ao direito à moradia.

  • Iniciativas populares vêm tratando de reverter esse quadro criando corredores verdes ao longo das vias públicas, de modo a interligar parques e permitir a circulação da fauna e o aumento da polinização.

Inúmeras casas de tijolo aparente despontam no horizonte do Ribeirão dos Meninos, manancial que traça a divisa dos municípios de São Paulo e São Caetano do Sul. De um lado, os comércios, universidades e parques da cidade com o melhor IDH do Brasil, na região do ABC; do outro, as casas populares da comunidade de Heliópolis, a maior favela da capital paulista.


Nela, um sem fim de construções irregulares encobrem uma área com cerca de 1 milhão de metros quadrados no Sacomã, distrito com índice de cobertura vegetal bem abaixo da média do município de São Paulo:  17,7% da área total, como mostra o Mapa da Desigualdade, levantamento anual feito pela Rede Nossa São Paulo, iniciativa do Instituto Cidades Sustentáveis. O bairro do Morumbi, por exemplo, tem quase 45% de cobertura vegetal.

Heliópolis é um exemplo extremo que mostra como, desde o início da década de 1970, milhares de famílias foram privadas do direito ao verde enquanto se estabeleciam em regiões marcadas por problemas urbanos.


Hoje, estima-se que cerca de 200 mil pessoas vivam em Heliópolis, um desafio social e urbanístico para os governos e para a própria população. Pouca infraestrutura, falta de segurança e acesso a serviços são algumas das queixas amplamente noticiadas na imprensa sobre a comunidade. Mas, para entender como Heliópolis se tornou um dos gargalos da política de habitação urbana, é preciso fazer uma breve retrospectiva no tempo.


Em meados da década de 1970, enquanto zonas centrais eram planejadas por companhias como a City – que trouxe o conceito de bairros-jardim para a metrópole –, as periferias se solidificaram sob uma “arquitetura do possível”, em que a paisagem é alterada desordenadamente, sem obedecer a critérios habitacionais, urbanísticos e ambientais.

Paisagem de Heliópolis, a maior favela de São Paulo. Foto: Ricardo Stuckert/fotospublicas.co


O desarranjo que se vê em Heliópolis é consequência de um processo de urbanização que privilegia a expansão horizontal da cidade, como explica Raquel Rolnik, professora da Universidade de São Paulo (USP) e autora do livro São Paulo: O Planejamento da Desigualdade: “A expansão horizontal foi se implantando em terrenos cada vez mais impróprios do ponto de vista geomorfológico, quando a urbanização ultrapassou as áreas da bacia sedimentar (onde os terrenos têm baixo potencial de erosão), para atingir os solos do complexo cristalino, de maior declividade e altamente vulneráveis à erosão”, escreve a professora.


A falta de cobertura vegetal em Heliópolis e a falta de solo propício à absorção de chuvas — que, por consequência, provocam o aumento de enchentes — são problemas que cercam questões como o direito à moradia e a qualidade de vida. Em imagens de satélite, pode-se ver como a área é cinzenta. Há poucos respiros verdes em meio a tantas casas, e em um deles está a Missão Ambiental Helipa, que arborizou boa parte do terreno ao redor de um conjunto habitacional assinado por Ruy Ohtake  no meio da comunidade.


“O direito ao verde também é direito à biodiversidade”


A história da Missão Ambiental, que cuida e incentiva a ação popular na área verde dentro de Heliópolis, partiu do biólogo Casé Oliveira em 1991. “O objetivo era reflorestar uma área para a criação de um refúgio, uma comunidade de vida na terra”, disse Oliveira à Mongabay.


Na época da implementação do projeto, às vésperas da Eco 92, conferência do clima que levou autoridades e ambientalistas importantes para o Rio de Janeiro, Oliveira e sua companheira Nina fundaram a ONG que hoje empreende uma agrofloresta dentro da comunidade. Depois de três décadas, a Missão Ambiental se tornou uma referência em matéria de projetos sociais na cidade e inaugurou sedes em outros bairros, como o Ipiranga.


Membro da Missão Ambiental e conselheiro do Cades (Conselho Municipal do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável) Ipiranga, o arquiteto e urbanista Thiago Santos pondera que o projeto público de arborização municipal está aquém do ideal e sofre com pressões cada vez maiores. Ele se refere à recente modificação no Plano Diretor que rege a cidade de São Paulo e ao assédio imobiliário tocado por grandes incorporadoras.


“O Ipiranga é um bairro onde se pode ver inúmeros contrastes dentro de uma única região na cidade”, conta Santos. Em uma caminhada pelo distrito, é possível ver como a paisagem, antes predominantemente residencial, com casas  e construções baixas, vem se transformando em um canteiro de obras.


A subprefeitura da região do Ipiranga é dividida em três áreas: Ipiranga, Sacomã e Cursino. Santos explica como a paisagem urbana se fragmenta naquela área.  “O Alto do Ipiranga [perto do Museu Paulista da USP] é bem arborizado. Parques, praças e um corredor verde cortam a Avenida Nazaré [a maior do distrito], mas, quando andamos rumo ao Sacomã e Cursino [áreas periféricas], isso muda.”


Menos árvores, calçadas estreitas e pavimentos irregulares são fatores que interferem no plantio e na manutenção de árvores em vias públicas, pontua o arquiteto, que traz o exemplo de comunidades como Heliópolis.


“O direito ao verde também é direito à biodiversidade. Em projetos que tocamos na Missão Ambiental, como o do Corredor Verde, é feito o plantio de árvores pelo bairro para incentivar também a polinização, além de termos já observado novas espécies de aves”, conta Santos.

Árvore no Corredor Verde do Butantã, Zona Oeste de São Paulo. Foto: TiagoLubiana, CC BY 4.0, via Wikimedia Commons


Com o objetivo de minimizar ilhas de calor e tornar a paisagem menos hostil, a implementação do Corredor Verde – projeto piloto que começou em meados de 2023 no bairro do Butantã – vem progredindo por conta de uma parceria de lideranças populares locais com as subprefeituras. O objetivo, além de plantar em vias públicas, é interligar grandes áreas verdes nos bairros para formar um corredor onde a circulação da fauna é livre. Butantã e Ipiranga são pioneiros nas iniciativas.


Histórias como a do Corredor Verde são exceção em São Paulo, que, no imaginário popular, ganhou o epíteto de “Selva de Pedra”. Para o Secretário do Verde e do Meio Ambiente da cidade de São Paulo, o apelido pode soar como um exagero. Já que são  cerca de 650 mil árvores espalhadas pelas vias públicas, segundo o último levantamento realizado pela cidade em 2017 (a Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente diz que os dados serão atualizados até o fim de 2024).


São Paulo tem 11,7% de suas ruas arborizadas – dado que contrasta com outras capitais, como Curitiba, onde o índice de arborização viária é de 76,1%, e Porto Alegre, com um número que chega a 82,7% de árvores plantadas nas ruas.


Este número não conta plantios em parques e é um dado importante para se projetar quais bairros, por exemplo, estão mais suscetíveis a ilhas de calor e aos poluentes atmosféricos.


Segundo o Mapa da Desigualdade de São Paulo, os distritos com melhores índices de arborização estão, justamente, no extremo norte e no extremo sul – onde ficam as serras da Cantareira (distritos de Tremembé e Perus) e do Mar (distritos de Marsilac e Parelheiros), ambas protegidas por parques estaduais.


Segundo Igor Pantoja, da Rede Nossa São Paulo, que elaborou o Mapa da Desigualdade, em Marsilac, assim como na região da Cantareira, as contradições saltam dos números para a realidade: “Nas bordas desses lugares, muito verde; mas, dentro dos bairros, poucas árvores e falta de estrutura”.

Cobertura vegetal do município de São Paulo. Imagem: GeoSampa/ Prefeitura de São Paulo


Ativismo

Para tentar compreender essa dissonância, a Mongabay conversou com lideranças envolvidas com a pauta ambiental em São Paulo para saber como o tema é tratado pelas subprefeituras e pela Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente.


Para Rosângela Vieira, membro do Cades da região do Campo Limpo, a questão de planejamento é o primeiro passo para se falar em democratização do verde na cidade: “em São Paulo, olha-se a questão do plantio de árvores de uma forma quantitativa, e não qualitativa”.


Vieira dá exemplos de comunidades na Zona Sul da cidade, onde existem bolsões verdes que contrastam com a falta de infraestrutura ambiental dentro dos bairros, ou seja,  sem árvores, praças e bosques. Ela cita os distritos de Marsilac e Parelheiros, cujos mananciais resultam em bons indicadores de arborização, “mas, se você pegar por distrito, de forma regionalizada, existem regiões completamente cinza”.

Paisagem do distrito de Marsilac, Zona Sul de São Paulo, em área do Parque Estadual da Serra do Mar. Foto: Marcondesroyal, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons


Com menos verde nos bairros, as queixas dos vizinhos se multiplicam. “A gente vê uma série de consequências, como o aumento das ilhas de calor e da poluição”, pontua Vieira. Em outros pontos da cidade, como a comunidade de Paraisópolis, a situação é ainda mais alarmante.


Para o ativista e músico Valdemir José Trindade, o Guga Brown, existe em Paraisópolis, favela onde nasceu e mora até hoje, um “medo de se plantar árvore”. Ele explica: “Quando alguém planta uma árvore no seu quintal, isso implica custos de manutenção. Com o passar do tempo, é preciso fazer a poda, mas quase nunca a prefeitura atende aos pedidos. Geralmente são as pessoas que têm que arcar com os custos, e isso afasta [os moradores do plantio].


“Em Paraisópolis, são poucas árvores. Praças, canteiros e parques têm uma ou outra; na maioria das vezes, não existe espaço nem pra você sair de casa e pegar uma sombra. As pessoas ficam deprimidas. Quando saem, ficam expostas ao sol, ao calor. Está cada vez mais quente e aqui a gente tem cada vez menos árvore”, conta Brown.


Segundo Evangelina Araújo, médica patologista, especialista em sustentabilidade, diretora do Instituto Ar e embaixadora da iniciativa Médicos pelo Ar Limpo, “áreas verdes têm um papel fundamental para a saúde dos moradores de uma cidade”. “Pela OMS [Organização Mundial da Saúde], as cidades devem ter 12 metros quadrados por habitante de áreas verdes. Além do conforto e a sensação de bem-estar com suas sombras e o equilíbrio que trazem ao microclima local, elas absorvem poluentes atmosféricos.”

Vista da favela de Paraisópolis, ao centro, cercada pelo verde do bairro do Morumbi. Foto: Fernando Stankuns, CC BY-NC-SA 2.0


“Nós ultrapassamos a marca recomendada pela OMS: São Paulo tem 16 m² [de áreas verdes] por cidadão”, diz Rodrigo Ravena, secretário do Verde e Meio Ambiente do município, frisando que regiões menos arborizadas são contempladas com mais exemplares. “A secretaria tem ampliado as ações para arborização da cidade, mas a gente tem que evoluir isso na medida em que a cabeça das pessoas evolui, e isso depende, no meio do caminho, da educação ambiental de todo mundo”.

Ravena lembra que, em 2023, a Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente mapeou a vegetação significativa da cidade de São Paulo, o que não ocorria desde 1988. “O levantamento mostrou um acréscimo de 32% para 44% de vegetação significativa protegida (ou seja, de 490 para 678 km²)”, escreveu o órgão à Mongabay por meio de sua assessoria de comunicação.


Lideranças discordam. Fábio Sanchez, um dos articuladores do Fórum Verde, organização civil sem fins lucrativos que acompanha a pauta ambiental da cidade de São Paulo, afirma que “falta para a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente investir em uma inteligência de arborização”.


Sanchez, que vê com maus olhos os desdobramentos da recente revisão do Plano Diretor da cidade, aponta que hoje “há uma maneira de cumprir metas onde não há tanta demanda assim”. Segundo o ativista, a Secretaria hoje investe, sobretudo, no plantio em parques, onde já há vegetação abundante, e esquece de áreas carentes de arborização. Na prática, bolsões verdes contrastando com áreas peladas.


O urbanista Thiago Santos vai na mesma linha de Sanchez: “A burocracia no trato com a Secretaria do Verde e com as subprefeituras enterra, muitas vezes, a boa vontade de quem quer plantar”. Guga Brown também traz histórias parecidas de cidadãos de Paraisópolis que precisam desembolsar recursos próprios para ter uma árvore em frente de casa.


Para Santos, falta especificar quantas árvores foram plantadas em determinados lugares – ruas, parques, praças, com especificações adequadas – para que planos mais efetivos e sustentáveis possam ser colocados em ação e assim evitar que os bairros percam o verde. Novamente, discute-se a questão da “inteligência de arborização”, citada por conselheiros do Conselho Municipal do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de diferentes regiões.


Nesta complexa equação envolvendo arborização, desigualdade e planejamento, quando se aponta para uma média, a cidade pode até cumprir metas internacionais, como as orientadas pela OMS. Mas no miúdo, no cotidiano, vê-se uma metrópole que agoniza, com obras perfurando bairros, cursos de água soterrados e árvores ao chão. As consequências são pagas pela grande maioria da população, que habita longe do verde e sofre com isso.


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