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O pesadelo do plático na África

Enquanto o continente é soterrado pelo lixo, a indústria do plástico segue crescendo

Uma mulher segura um jornal no lixão de Dandora, em Nairóbi, no Quênia, em 14 de fevereiro. Foto: Khadija Farah para o The Intercep

ROSEMARY NYAMBURA PASSA os fins de semana coletando plástico com sua tia Miriam no lixão de Dandora, em Nairóbi, capital do Quênia. O trabalho é exaustivo e toma tempo, pois as garrafas de plástico que elas vendem para outros comerciantes de resíduos são encontradas em meio a seringas, cacos de vidro, fezes, capas de celulares, controles remotos, solas de calçados, bugigangas, brinquedos, bolsas, embalagens, sacolas e uma quantidade incontável de películas plásticas. Mas Rosemary, de 11 anos, acredita que o esforço vale a pena.

A maior parte de seus seis primos – com os quais ela vive desde que sua mãe faleceu – abandonou o ensino médio porque a tia dela não tinha condições de pagar a mensalidade escolar. Se Rosemary concluir a escola e cursar a faculdade de medicina, ela promete voltar a Dandora. “Vejo como as pessoas ficam muito doentes aqui”, disse a menina num sábado recente, enquanto escalava um monte de lixo com odor rançoso. “Se eu me tornar médica, inclusive ajudaria elas de graça.”

Com o valor que recebe em troca das coletas, vai demorar até Rosemary ter o suficiente para bancar seus estudos. Qualquer coisa que valha o mínimo que seja é disputada no lixão de Dandora, que se espalha por uma área de mais de 12 hectares na região leste da capital queniana.

Grupos de empresários locais controlam quem negocia e coleta materiais no lixão, além de cobrarem tarifas para o acesso a certos locais. Pássaros, vacas e cabras já demarcaram suas áreas de alimentação. E os catadores por vezes brigam entre si pelos melhores achados. Sobras de comida de avião podem gerar disputas acirradas. Quem ganha devora completamente cada pedaço de pãozinho velho e seco, carne congelada e massa passada do ponto. O conteúdo dos potinhos de manteiga também é consumido. Em seguida, as embalagens plásticas são jogadas em enormes pilhas de resíduos.

Miriam Nyambura mostra seus dedos cortados depois de manusear cacos de vidro no lixão de Dandora. Foto: Khadija Farah para o The Intercept

Às margens do lixão, atravessadores compram garrafas PET – material que Miriam coleta sete dias por semana, recebendo menos de cinco centavos de dólar por quilo. O valor é maior do que o obtido em troca de embalagens de papelão, mas muito menor do que a quantia paga por latas. Para encontrar um quilo de garrafas plásticas, é necessário procurar por horas ou mesmo dias. E as bolsas que acomodam o material, chamadas de diblas, são muito grandes e pesadas para serem carregadas por crianças.

A entidade local Dandora HipHop City encontrou uma forma de ajudar crianças que vivem perto do lixão e não têm resistência física ou tempo para catar e carregar um quilo de lixo. A organização trabalha para que elas consigam obter algo em troca de poucas garrafas ou pedaços de plástico. No “banco” criado pela entidade, um espaço modesto a uma quadra do aterro, é possível trocar lixo por pontos, que podem ser usados para a aquisição de óleo de cozinha, farinha, vegetais e outros itens essenciais. Fundada por um artista do hip hop que cresceu na região, a organização também desenvolve um programa voltado a jovens. Em um prédio que fica junto ao lixão, ornado com pintura manual e sucatas utilizadas como cadeiras e sofás, a organização oferece um espaço para escrita, práticas musicais em computadores velhos, jogos ou para simplesmente passar o tempo.

Mas as quantias irrisórias que o grupo obtém em troca do plástico coletado não cobre o custo dos alimentos oferecidos pelo banco. Diante disso, a entidade tem usado doações de empregados e amigos para bancar suas atividades. A Dandora HipHop City buscou apoio junto à Coca-Cola, que parecia o parceiro empresarial perfeito. De um lado, avaliada em mais de 200 bilhões de dólares, a gigante do setor de bebidas vê a África como “um dos principais motores de crescimento para que a empresa avance”, conforme declaração recente do CEO James Quincey. De outro, as crianças de Dandora, que sofrem de fome, negligência e diversos problemas de saúde relacionados ao lixão e coletam muitas garrafas da empresa – por vezes, catando o material quando deveriam estar na escola.

Acima: Sede da Dandora HipHop City, localizada à beira do lixão de Dandora, em 15 de fevereiro de 2020. Com atuação focada em crianças e jovens, a entidade serve de espaço voltado às artes, à tecnologia e ao empreendedorismo, combatendo o desemprego na região.

Em setembro de 2018, uma delegação da Coca-Cola visitou a sede da entidade. Gerente de programas da Dandora HipHop City, Charles Lukania conta que, após o encontro, enviou uma proposta e um orçamento a membros da equipe de marketing que estiveram na reunião, ressaltando de que forma a empresa poderia apoiar o projeto do banco de coletas. Mas a visita e a proposta não resultaram em nenhum financiamento.

Em vez disso, “eles ofereceram um refrigerador cheio de Coca, que as crianças poderiam comprar”, afirma o gerente. Lukania explica que a maioria das crianças que trabalham no lixão não tem condições de adquirir refrigerantes: “Qualquer mísero dinheiro é usado para comprar comida”.

Acima: Ramsizo Burguda cria músicas no estúdio da Dandora HipHop City.Fotos: Khadija Farah para o The Intercept

Semanas depois, a empresa firmou uma parceria com a organização para realizar mutirões de limpeza, mas esses eventos não envolviam apoio financeiro direto. Em vez disso, garrafas de Coca-Cola eram dadas aos voluntários – somente após horas de coleta sob sol escaldante. “E os refrigerantes estavam em garrafas plásticas”, lembra Lukania.

Em resposta por e-mail às perguntas enviadas pelo Intercept, Camilla Osborne, chefe de comunicação da Coca-Cola para as regiões sul e leste da África, reconheceu que “nossa parceira de envase Coca-Cola Beverages Africa, no Quênia, ofereceu hidratação e lixeiras de reciclagem” em um dos eventos da entidade. Mas, segundo Osborne, “a empresa e seus parceiros de envase no Quênia não têm conhecimento de uma solicitação de verba por parte do grupo e não teve qualquer envolvimento direto” com a organização.

Osborne também observou que “Nenhuma organização é capaz de resolver sozinha os problemas do plástico no mundo”.

Justiça seja feita, a empresa é apenas uma de muitas que terceirizam os custos de limpeza de seus produtos e embalagens. Embora a Coca-Cola seja a maior fonte de resíduos plásticos na África e no mundo inteiro, segundo uma pesquisa global de 2019, todos os tipos de organização que produzem plástico e usam o material em seus produtos transferem para a sociedade os custos de prevenção e tratamento dos danos causados.

Nos Estados Unidos, essa terceirização fez com que os municípios arcassem com a coleta, o transporte e o processamento do lixo plástico dos fabricantes. Por anos, esse ônus era camuflado pela exportação de aproximadamente 70% dos resíduos para a China. Mas, desde que o país asiático fechou as portas para a maior parte do plástico oriundo dos Estados Unidos, as cidades norte-americanas descobriram que não têm recursos suficientes para destinar à reciclagem. Os governos locais abandonaram a atividade, provocando um incômodo generalizado e reforçando a conscientização sobre a persistência do plástico no meio ambiente.

Em países pobres, que agora sofrem de forma desproporcional com a crise global do plástico, o cálculo é outro. Embora as atrocidades ambientais tenham constrangido mercados de muitas nações ricas – e ainda que, ao final da pandemia do coronavírus, a rejeição ao plástico deva aumentar nesses países –, o uso do material em produtos e embalagens segue em ascensão na África e em outras regiões.

Com a mudança da política chinesa em relação a resíduos plásticos, Estados Unidos, Austrália e diversas nações europeias têm exportado seu lixo para outros países com capacidade ainda menor de lidar com o problema. Sem infraestrutura adequada para processar os materiais e sem os recursos para empurrar o lixo para outros lugares, o plástico soterrou essas nações, entupindo cursos d’água e inundando espaços urbanos e rurais – ao ponto de o material se misturar com o alimento de animais. Como o plástico não é biodegradável, suas partículas permanecem na água, no solo e no ar por séculos.

Enquanto a gestão do lixo plástico onera governos locais nos Estados Unidos, nos países em desenvolvimento sem coleta de resíduos ou sistemas de reciclagem subsidiados o ônus recai sobre os indivíduos. No Quênia, onde cerca de 18 milhões de pessoas vivem com menos de 1,90 dólar por dia, a responsabilidade da qual se eximem algumas das empresas mais lucrativas do mundo acaba nos ombros das pessoas mais pobres do planeta, como Rosemary e sua tia. E o Quênia é apenas um entre dezenas de países onde o plástico é responsável por violações de direitos humanos, trabalho infantil e danos ao meio ambiente.

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