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Da picada à pílula: Uma razão a mais para proteger a biodiversidade

  • Mauro Scarpinatti
  • 24 de set.
  • 9 min de leitura

Cada veneno, cada toxina, cada composto bioativo é resultado de um processo evolutivo específico – são moléculas testadas e refinadas pela própria natureza

Instituto Butantan. Foto: © Divulgação/Instituto Butantan
Instituto Butantan. Foto: © Divulgação/Instituto Butantan

Você provavelmente conhece alguém que já tomou um medicamento que veio do veneno de uma cobra brasileira. O captopril, um dos remédios mais prescritos no mundo para hipertensão, nasceu de uma descoberta com o veneno da jararaca. E não é um caso isolado: o Ozempic, medicamento que virou febre para diabetes e emagrecimento, tem origem no veneno de um lagarto do deserto americano.


Essa conexão entre animais, peçonhentos ou não, e remédios que salvam vidas não é coincidência. É o resultado de uma lógica científica poderosa: a natureza já inventou muitos dos medicamentos de que precisamos, e agora nossa trabalho é encontrá-los, entendê-los e transformá-los com segurança em tratamentos. E nessa corrida pela cura, o Brasil tem uma vantagem única: somos oficialmente o campeão mundial da biodiversidade!


O pioneiro que mudou a medicina mundial


A história dessa revolução farmacológica começou no Brasil há mais de 120 anos. Em 1901, o médico Vital Brazil, diretor do Instituto Butantan, desenvolveu o primeiro soro antiofídico específico do mundo, estabelecendo um novo paradigma científico que conectaria para sempre a biodiversidade brasileira ao desenvolvimento de medicamentos revolucionários.


Diferente do soro genérico criado pelo francês Albert Calmette alguns anos antes, Vital Brazil descobriu que cada espécie de serpente exigia um antídoto diferente. Imunizando cavalos com venenos específicos e testando os soros resultantes em animais de laboratório, ele provou que o conceito de “especificidade antigênica” era fundamental – uma mesma toxina modificada de forma específica poderia salvar vidas.


A primeira rede de ciência cidadã do Brasil

Para conseguir serpentes suficientes para seus estudos e produção de soros, Vital Brazil criou o que hoje reconhecemos como o primeiro grande projeto de ciência cidadã do Brasil, e um dos primeiros do mundo.

Ele estabeleceu uma rede de colaboração com fazendeiros e profissionais de saúde no interior, na qual as pessoas mandavam as serpentes para o Instituto, e ele mandava o soro para as cidades. A partir de 1903, o sistema de permuta funcionava assim: em troca de serpentes capturadas por fazendeiros e trabalhadores rurais, o Butantan fornecia soros antiofídicos e orientações sobre como tratar picadas.


Arte da capa do artigo de Lorraine Garret e J Hall Connor, publicado em 1945 pela União Pan Americana, falando de Vital Brazil, do soro antiofídico e do Instituto Butantan.
Arte da capa do artigo de Lorraine Garret e J Hall Connor, publicado em 1945 pela União Pan Americana, falando de Vital Brazil, do soro antiofídico e do Instituto Butantan.

O sistema era tão sofisticado que Vital Brazil negociou com o governo estadual o transporte ferroviário gratuito das serpentes, e mais tarde um acordo federal garantiu que as companhias ferroviárias fornecessem o transporte dos animais e passagens para o pessoal envolvido no serviço. Em 1911, essa rede já conseguia fornecer ao instituto mais de 3.300 cobras por ano, vindas de várias regiões.


Quando um presidente conservacionista visitou o Butantan


Uma das histórias mais marcantes dessa época foi a visita do ex-presidente americano Theodore Roosevelt ao Instituto Butantan, durante sua passagem pelo Brasil em 1913, antes da famosa expedição amazônica que ele relataria no livro “Nas Selvas do Brasil”.


Roosevelt ficou impressionado com o trabalho de Vital Brazil e escreveu em seu relato: “Ao chegarmos a São Paulo, visitamos o Instituto Serumterápico (como se chamava o Instituto Butantan, na época). O seu diretor é o Dr. Vital Brasil, que tem realizado trabalho verdadeiramente extraordinário e cujos experimentos não são relevantes apenas ao seu país, mas a toda a humanidade”.

Reprodução de carta enviada a Vital Brazil por Theodore Roosevelt, em 1913, pedindo permissão para usar em um artigo as fotos de serpentes que ganhou durante sua visita ao Instituto Serumtherapico (antigo nome do Instituto Butantan). Imagem: Acervo Instituto Butantan, Centro de Memória.
Reprodução de carta enviada a Vital Brazil por Theodore Roosevelt, em 1913, pedindo permissão para usar em um artigo as fotos de serpentes que ganhou durante sua visita ao Instituto Serumtherapico (antigo nome do Instituto Butantan). Imagem: Acervo Instituto Butantan, Centro de Memória.

A admiração de Roosevelt pelo instituto se tornaria ainda maior quando, anos depois, em Nova York, um funcionário do zoológico do Bronx foi picado por uma cascavel. Foi o soro brasileiro que salvou a vida do homem – um caso que ganhou destaque no The New York Times e consolidou internacionalmente a reputação do Butantan como centro mundial de referência em toxinologia.


Visita do ex-presidente estadunidense Theodore Roosevelt ao Instituto Butantan, em 1913. Da esquerda para direita: em primeiro, o Dr. Vital Brazil, em quarto, Theodore Roosevelt, e em sétimo, o Marechal Rondon. Imagem: Acervo Instituto Butantan/ Centro de memória.
Visita do ex-presidente estadunidense Theodore Roosevelt ao Instituto Butantan, em 1913. Da esquerda para direita: em primeiro, o Dr. Vital Brazil, em quarto, Theodore Roosevelt, e em sétimo, o Marechal Rondon. Imagem: Acervo Instituto Butantan/ Centro de memória.

Roosevelt não era apenas um político admirador da natureza e da ciência brasileira: foi também um dos maiores conservacionistas da história. Ao mesmo tempo que o Instituto Butantan começava sua missão no Brasil, Roosevelt criou 4 parques nacionais e assinou um documento, o “Antiquities Act de 1906”, que dava ao presidente a autoridade de criar Monumentos Nacionais (um tipo de área protegida) sem a aprovação do congresso. O presidente também se preocupava com a rapidez com que seu país consumia suas florestas, e assim criou em 1905 o Serviço Florestal dos Estados Unidos. Seu objetivo era tratar as terras públicas como um recurso a ser administrado, e não explorado. Usando um discurso totalmente inovador e muitas vezes sofrendo a oposição do Congresso, que via a proteção das grandes extensões de áreas naturais como um problema para a economia do país, Roosevelt ligou a conservação aos temas mais amplos da civilização e do nacionalismo estadunidenses, uma preocupação não apenas pública, mas também moral.


Embora nesta época o conceito de biodiversidade ainda não existisse formalmente, Roosevelt já compreendia que a vida silvestre é um patrimônio insubstituível que precisa ser protegido da destruição feita em nome do crescimento econômico. E hoje, as áreas protegidas nos Estados Unidos (e em vários outros lugares do mundo onde houve investimento do governo nesse sentido) geram milhões de dólares em turismo e serviços ambientais.

Do veneno da jararaca ao remédio para pressão

Uma das descobertas mais famosas sobre a importância de se pesquisar elementos da biodiversidade para descobrir novos medicamentos veio décadas depois da contribuição de Vital Brazil, quando pesquisadores brasileiros identificaram no veneno da jararaca a substância que baixava a pressão arterial.

A partir desse achado, a indústria farmacêutica desenvolveu o captopril, um medicamento que bloqueia uma enzima específica no corpo para baixar a pressão arterial. O captopril se tornou um dos remédios mais prescritos no mundo para hipertensão e deu origem a toda uma família de medicamentos similares.

O princípio por trás era simples, mas revolucionário: uma toxina que em grandes doses matava podia, em doses microscópicas e modificada quimicamente, curar.


A revolução do Ozempic também veio da biodiversidade


Hoje, essa mesma lógica está presente no Ozempic e similares, que também têm origem na biodiversidade – desta vez de um lagarto venenoso do deserto americano. Na década de 1980, pesquisadores estudando o veneno do monstro-de-gila descobriram uma substância similar ao hormônio que nosso intestino produz naturalmente após as refeições para controlar o açúcar no sangue e regular o apetite, mas que dura muito mais tempo no organismo.


Cientistas pegaram o hormônio do lagarto, o modificaram quimicamente para funcionar ainda melhor em humanos e criaram um tratamento que não só controla o diabetes como promove perda de peso significativa. É a biodiversidade sendo usada para curar nossos problemas de saúde – uma nova versão do mesmo conceito que Vital Brazil aplicou com serpentes brasileiras há mais de 120 anos.


O Brasil: campeão mundial da biodiversidade

Essa multiplicidade de descobertas não é coincidência. O Brasil é oficialmente o campeão mundial da biodiversidade, liderando o planeta com 17,8% de todas as espécies de aves, 13,5% dos anfíbios, 14,4% dos répteis, 12,1% dos peixes e 12,7% das plantas vasculares do mundo. Muitas dessas espécies ocorrem apenas aqui, e em nenhum outro lugar do planeta!


Entre as florestas amazônica e atlântica, separadas pelos biomas mais abertos – Cerrado e Caatinga, e a mistura de fisionomias que forma o Pantanal, além de uma gama de ecossistemas terrestres e aquáticos, o país abriga milhões de espécies que desenvolveram, ao longo de milhões de anos de evolução, um arsenal químico sofisticado para sobreviver. 


Para ter dimensão dessa riqueza: o Brasil possui mais espécies de plantas e anfíbios que qualquer outro país, ocupa a segunda posição em mamíferos e a terceira em aves, répteis e peixes. Cada veneno, cada toxina, cada composto bioativo é resultado de uma pressão evolutiva específica – são moléculas testadas e refinadas pela própria natureza em uma escala incomparável no planeta.


As descobertas continuam no Butantan


O Instituto Butantan mantém viva a tradição de transformar biodiversidade em medicina. Pesquisadores da instituição descobriram recentemente que a crotoxina, uma proteína do veneno da cascavel, pode ser usada contra a esclerose múltipla ao regular a acetilcolina, um neurotransmissor importante para o sistema nervoso.

Outras pesquisas mostram que substâncias de sapos podem proteger contra o Alzheimer, que peptídeos de escorpiões ajudam a regenerar células nervosas, e que compostos de fungos da Caatinga, o único bioma exclusivamente brasileiro, podem ajudar na cicatrização.


O longo caminho até a farmácia

O caminho entre a descoberta de uma substância natural e sua chegada às farmácias é longo e caro – pode levar décadas e custar bilhões. É preciso isolar os compostos ativos, testar a segurança, entender os mecanismos de ação, fazer modificações químicas para melhorar a eficácia, conduzir estudos pré-clínicos e depois clínicos com milhares de voluntários.

O captopril levou anos para sair do veneno da jararaca para as prateleiras; o Ozempic teve desenvolvimento semelhante. Cada etapa é fundamental para garantir que o que era tóxico na natureza se torne terapêutico na medicina.

O lado sombrio: rituais perigosos


O mesmo veneno de sapo que pesquisadores estudam cuidadosamente para possíveis tratamentos neurológicos é consumido por pessoas que pagam fortunas para experimentar rituais que prometem cura espiritual, fortalecimento das defesas naturais do organismo ou alívio de transtornos mentais. Desde o kambô, uso da secreção da perereca amazônica Phyllomedusa bicolor aplicada na pele, até o veneno seco do sapo-do-deserto fumado em rituais psicodélicos, essas práticas têm se espalhado sem supervisão médica ou estudos de segurança adequados.

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O problema para os humanos é que venenos não processados contêm centenas de proteínas e compostos desconhecidos que podem levar de alucinações até problemas cardíacos, convulsões e outros efeitos inesperados. O problema para os anfíbios é que seu uso pode ameaçar a sobrevivência das espécies empregadas nos rituais. A diferença entre medicina e veneno está literalmente na dose e no processo científico rigoroso.


A tragédia da perda acelerada


O ponto mais trágico da história dessa busca de medicamentos que salvam vidas é a perda acelerada de nossa biodiversidade, que se intensifica justamente quando mais precisamos dela. Dados recentes mostram um cenário complexo: embora o desmatamento na Amazônia tenha caído 30,6% em 2024, janeiro de 2025 registrou aumento de 68% no desmatamento em relação ao mesmo período do ano anterior. Mais alarmante ainda, a degradação florestal atingiu níveis recordes, impulsionada principalmente por incêndios.


O que mais assusta é que estamos nos aproximando rapidamente de pontos de inflexão irreversíveis. Um estudo recente publicado na revista Nature alertou que a Amazônia pode atingir seu ponto de não retorno em 2050, quando entre 10% e 47% de suas florestas estarão expostas a perturbações que podem resultar em mudanças irreversíveis.


Extinções já consumadas

A rolinha do planalto, Columbina cyanopis, foi vista pela última vez em 1941 até sua redescoberta em 2015 por Rafael Bessa, autor da foto, em uma região do cerrado mineiro. É considerada criticamente ameaçada, e uma das aves mais raras do planeta. Foto: Rafael Bessa
A rolinha do planalto, Columbina cyanopis, foi vista pela última vez em 1941 até sua redescoberta em 2015 por Rafael Bessa, autor da foto, em uma região do cerrado mineiro. É considerada criticamente ameaçada, e uma das aves mais raras do planeta. Foto: Rafael Bessa


A pressão da ocupação e alteração desenfreada dos ecossistemas se repete em todos os biomas brasileiros. Enquanto lutamos para preservar o que resta, na Mata Atlântica e na Caatinga algumas espécies já desapareceram para sempre.


Quatro aves brasileiras foram recentemente declaradas extintas pela BirdLife International: a ararinha-azul (Cyanopsitta spixii), o caburé-de-pernambuco (Glaucidium mooreorum), o limpa-folha-do-nordeste (Philydor novaesi) e o gritador-do-nordeste (Cichlocolaptes mazarbarnetti). A ararinha-azul, eternizada no filme “Rio”, teve seu último exemplar selvagem avistado em 2000, embora existam cerca de 150 indivíduos em cativeiro aguardando projetos de reintrodução.



Esforços heróicos de instituições como o Museu Biológico do Instituto Butantan, o Museu de Zoologia da USP e a SAVE Brasil, dentre muitas outras, tentam reverter essa tragédia através de programas de conservação ex-situ, criação de áreas protegidas e projetos de reintrodução.

Cada espécie que desaparece representa não apenas a perda de milhões de anos de evolução, mas também de potenciais medicamentos que nem conhecemos ainda – uma biblioteca farmacológica sendo queimada antes mesmo de ser lida.

O Butantan: guardião da biodiversidade e da ciência


Além de ter como responsabilidades a guarda de uma importante área verde representada pelo seu parque urbano, com mais de 80 hectares de Mata Atlântica preservados em meio à metrópole paulistana, da comunicação para a conservação representada pelo Museu Biológico com seus milhares de visitantes anuais, especialmente crianças, e da produção de vacinas e soros, o Instituto Butantan segue sua missão de estudar sistematicamente a biodiversidade brasileira.


Pesquisadores testam venenos de serpentes contra a esquistossomose, investigam como compostos de abelhas podem combater parasitas, e estudam moléculas de joaninhas com propriedades antimicrobianas. É uma corrida contra o tempo: a cada espécie que desaparece por desmatamento ou mudanças climáticas, perdemos potenciais medicamentos que nem conhecemos ainda.


Nossa maior esperança está na biodiversidade


A lição que vem desde Vital Brazil é simples mas poderosa: a natureza já inventou muitos dos remédios de que precisamos. Nosso trabalho é encontrá-los, entendê-los e transformá-los com segurança em tratamentos que salvem vidas.


Em um mundo onde novas doenças surgem constantemente – muitas delas por causa das mudanças que temos causado nos processos ecológicos – e antigas infecções desenvolvem resistência, nossa maior vantagem não está em explorar as últimas reservas de petróleo na foz do rio Amazonas, como muitos parecem pensar.

Nossa maior esperança está na nossa biodiversidade – desde que tenhamos a sabedoria de preservá-la e a ciência para decifrá-la.



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